FORMAR PARA OS VALORES CRISTÃOS

Artigo 030

Parece um pouco contraditório ou redundante falar em formar para os valores cristãos quando estamos escrevendo sobre formação religiosa e/ou presbiteral e partimos do princípio que, o formando a formanda já trazem em sua consciência os valores básicos da vida cristã.

Acredito que uma das maiores crise da sociedade atual é a “ética” e aqui entra os valores. Esta crise reflete nos vários campos da humanidade: economia, política, direito, convivência, religião e, em nosso caso específico, na vida religiosa e sacerdotal. Sem a consciência e o convencimento dos valores cristãos é difícil formar para os valores da vida consagrada e sacerdotal e sobretudo para os conselhos evangélicos.

Existem perguntas que perpassam este tema: ainda precisamos falar de valores na vida religiosa e sacerdotal? Ensinamos os valores ou educamos para os valores? Formar para quais valores? Ainda precisamos falar, na atual etapa do processo formativo, de honestidade, respeito, justiça, fidelidade, solidariedade, coerência etc?

O ato de educar (do latim e-ducere; conduzir para fora de) pode ser, metaforicamente, comparado a um parto. É um ato de colaboração com um processo cujo sujeito principal é aquele que é educado, formado. Podem transmitir-lhe conhecimento, ensinar regras, mas isto não significa ainda que o empenho educativo tenha tido sucesso. É preciso que o destinatário assuma em primeira pessoa a responsabilidade do próprio caminho, tornando-o seu criativamente.

A formação é uma atividade que visa promover o bem do(a) formando(a), que é posto na condição de prover a si mesmo o próprio bem. Não se pode transmitir aos outros os valores cristãos como se faz com os fundamentos de uma disciplina científica, porém, isso não diminui a importância decisiva do papel do(a) formador(a), educador(a).

Na etimologia do termo educare há referimento ao verbo ducere, conduzir, e este evoca a tarefa de guia, a ação de quem conhece a estrada e assume a responsabilidade de acompanhar o outro no caminho. Neste “acompanhar”, o elemento decisivo não é tanto o discurso, mas o estilo prático com o qual o(a) formador(a) desempenha sua função, com o seu comportamento, o que significa ser virtuoso(a). Formar a um valor é possível, mas somente se o(a) formador(a) se dá conta que cabe a ele(a) por primeiro realizá-la, se deseja “contagiar” o(a) formando(a). Não se esqueça, só podemos conduzir alguém por um caminho, se conhecemos e percorremos este mesmo caminho.

A formação para uma vida virtuosa é um processo de dentro para fora nas pessoas de boa vontade, que visa formar sua maneira de pensar, decidir, agir no mundo e comunicar-se com Deus e com os outros; portanto, é imprescindível que o indivíduo adquira o hábito de agir bem segundo as virtudes cristãs. A pessoa humana é sujeito responsável por seus atos e por seu comportamento, tanto perante a sua própria consciência, quanto os outros e Deus.

A formação para os valores cristãos é ação do Espírito Santo que age na consciência da pessoa que se abre e acontece também nas relações humanas. O ser humano é um ser indigente, enquanto ser para o encontro, isto é, ele precisa de Deus, do cosmos e dos outros. Escreve Aristóteles: “O homem que não precisa de nada, bastando a si mesmo, é uma besta ou um deus”¹ . A pessoa, a partir do ponto em que se define como sujeito aberto ao outro e ao Outro/Transcendente, é um ser relacional.

Como estamos falando em formação, esta se dá também nas diversas formas de relações próprias da vida em comunidade. Por isso a comunitariedade é complementação essencial à personeidade individual. Uma não se entende sem referência à outra. Todo o comportamento concreto acontece na integração dialética entre personeidade e comunitariedade. Pessoa e comunidade são sujeitos de valores morais responsáveis pela formação pessoal e da comunidade: ‘nem só a pessoa individual, nem só a coletividade’.

A responsabilidade não pode ser individualizada ao extremo nem diluída no anonimato da comunidade. Além da interioridade, o homem é uma realidade aberta (essa é uma qualidade essencial do ser humano) e constitui-se em referência ao outro e diante de um “nós”. O “eu” constitui-se em referência a um “tu”, diante de um “nós”.

O(A) mediador(a) da formação para os valores cristãos pode ser também um companheiro, um amigo, o irmão, a irmã de comunidade; como afirma Santo Tomás de Aquino: ele(a) “deve descobrir uma pessoa ainda privada de uma educação moral e que necessita de um amigo que seja também um mestre no primeiro contato com as virtudes. De fato, aqueles que ainda são imaturos moralmente necessitam de amigos para tornar-se virtuoso”.²  

Entretanto, não podemos dizer: “Ensina-me a ver!” Ninguém pode ensinar o outro a enxergar. Neste processo formativo, “ver” e “querer” são dois elementos da escolha prática, nos quais se exprime um valor. Formar para os valores significa levar uma pessoa a descobrir que este é o modo cristão de viver, independente da vocação a que foi chamado(a). Quantos(as) ao desistirem da formação ainda cultivam os valores da vida cristã?

Somente no decorrer do empenho formativo o(a) formando(a) começa a entender o significado daquilo que está acontecendo. Talvez a pessoa perceba somente muito tempo depois, o que pode ser denominado de “formandos(as) póstumos(as)”, referindo-se a tantos que começam a entender e a querer seguir o que foi ensinado somente depois de muitos anos. No processo formativa, sem a tomada de consciência, às vezes exaustiva e tardia, a aventura formativa não pode realizar-se.

O processo formativo exige paciência, gradualidade, disciplina e reciprocidade estendida no tempo. Não é feita de experiências ocasionais e de gratificações instantâneas. Exige estabilidade, planejamento corajoso, empenho prospectivo. Uma autêntica formação deve responder à necessidade de significado e de felicidade das pessoas no desejo de responder ao chamado de Deus. Devemos nos deixar formar a cada dia e em cada contexto ou situação para os valores do Reino de Deus.

Formar cristãmente não significa, pois, prescrever uma “receita” sobre o que é certo fazer em cada circunstância particular, mas ajudar a pessoa a amadurecer os valores cristãos e, sobretudo, a sabedoria, com que sua consciência, iluminada pelo Espírito Santo, poderá orientar-se em todas as situações, inclusive as imprevisíveis. Na formação para os valores cristãos não existe uma receita a qual basta seguir para formar uma pessoa desta ou daquela forma. A pessoa é um projeto, marcado por heranças genéticas, pela individualidade, mas existe também o contexto comunitário no qual nasce e terá de realizar-se, sempre à luz do Espírito Santo.

Paradoxalmente a pessoa humana é aberta, mas pode fechar-se em si mesma, falseando sua identidade, tornando-se um ser escondido e, por isso, não totalmente acessível. Para que a formação seja possível, a pessoa dever querer abrir-se livremente ao processo. Infelizmente muitos de nossos formandos(as) são como um pato ao atravessar um lago; ele chega do outro lado do lago “sacode” a água e sai seco, ou seja, a água não molha o pato. No entanto, muitos de nós passamos pela formação e não nos deixamos ser tocados pelos valores.

A escolha de algo bom ou melhor não é fruto de uma aplicação mecânica de alguns princípios universais e imutáveis, mas de um discernimento que se faz na relação honesta com Deus que acontece na oração, nas celebrações, nos estudos, na leitura da Palavra de Deus, na direção espiritual, nas formações, no acompanhamento formativo. Portanto, formar significa ajudar a alguém a crescer em um estilo de liberdade que lhe coloque em condições de assumir as próprias responsabilidades, os valores propostos pelo Reino e aceitando “a cruz” que cada escolha comporta à luz do “sequela Christi”.

Qual o constitutivo do valor moral na vida cristã? O valor moral cristão consiste no dinamismo conversão e da cristianização (ou santificação) crescente do fiel na história da humanidade. O ideal de realização de cada pessoa deve ser conquistado de modo dinâmico nas categorias da história da salvação. O constitutivo específico do valor moral cristão é o Cristo, enquanto interiorizado no viver de cada pessoa.

Padre Leão Dehon diz que: “Educar um cristão não é apenas dar-lhe noções de ciências humanas que lhe ajudem a obter um estatuto social. Antes de tudo isso é necessário criar nele um caráter nobre e excelente, costumes puros, virtudes fortes. É formar nele a fé que abre o entendimento para o mundo invisível, a esperança que fortalece o coração com a perspectiva de uma felicidade merecida e o amor que torna Deus perceptível através das densas nuvens da vida”. ³

O fiel cristão que intenta viver uma vida segundo Deus, conta com a graça divina e com os valores humano-cristãos, ou seja, com todos os meios para conseguir o fim a que Ele o chama. Em consequência, com a ajuda do Senhor e o esforço próprio, há de ir crescendo nas virtudes, libertando-se dos pecados e correspondendo cada vez mais ao chamado de Deus.




Padre Mário Marcelo Coelho, scj





 ¹ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 350p. 1253a.
 ² S. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 8 vols., São Paulo: Loyola, 2001-2006, VII, 1.
 ³DEHON, L. Oeuvres Sociales. IV, p.278. (Escritos do Padre Leão Dehon).

 
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